segunda-feira, 18 de junho de 2012

Mais desgosto menos desgosto


Barbaridade era chegar ao colégio e ver-me rodeada de crianças com competências sociais que eu não só não adquirira como nem suspeitava serem necessárias para a minha sobrevivência.
 Viver no meio das vinhas, andar de pés descalços em cima da caruma, sentar-me nas figueiras quando o estômago pedia alimento e contar histórias para companhias fantasmagóricas era o que aprendera a fazer no começo da minha carreira social!
 A Béba, velha vestida de preto, como todas as velhas que me agarravam na mão e me sentavam nos banquinhos de madeira para cortarmos as couves para os pitos, cantava-me umas músicas. "Há que distrair a menina..." A mim tanto me dava; cantasse ela ou não, eu nunca deixara que se me entalassem notas na garganta. Mas pronto, a bem dizer, se não fosse ela não me passaria pela bendita alma falar de gatos espancados por paus ou dizer-me a caminho de Viseu! A Béba lá se esmifrava; voz de cana rachada, peito inflado e orgulhoso. que sabia o publico pouco exigente podendo, desta forma, dar-se ares de artista à muito perdidos nas fissuras dos seus rijos calcanhares.
Tudo muito bonito; mais bonito do que o entretém da Sra. Adelaide. Outra velha vestida de preto, de cajado na mão que a permanência das pernas nos arrozaias as fizeram tortas, que calhara parir o meu pai e, a gosto de salvar a neta, me punha nas ombreiras das portas a rezar terços... Muitas rezas levo eu de adiantado à salvação do prurido alheio.
Cada uma fazia o que melhor sabia à força de "entreter a menina"!
E a menina entretida andava. Nem mossa me fazia a proibição da mamã de me dar com os "fedelhos mal criados" que cirandavam pela aldeia. Queria eu lá saber daquelas caras feias com ranho a fugir-lhes do nariz. Ainda para mais irritava-me andar em bando! Muito melhor era esconder os sapatinhos no nicho de uma árvore e pedir-lhe que não contasse à Marquesa (minha mãe), que não fazia uso deles. Melhor era deitar-me no meio das folhas e ver as minhocas gordas a contorcerem-se evitando esbarrar no meu corpo. Melhor era olhar para as traves envelhecidas e cobertas de caruncho cantando para as aranhas que, de patas finas, iam bailando ao som da minha voz. A menina andava mais que entretida!
Pelo menos até dar um ataque de bem educar aos adultos e me espetarem o costado numa escolinha carregada de fedelhos que queriam, à força, substituir os amigos que eu já tinha!
Foi o belo, que a doce menina quando se viu acanhada no meio das gentes pôs-se nos cantos que foi uma beleza.
Numa mesma sala, todos nós, os meninos, fazendo roda, a freira no meio, e solta-se a frase "Vamos cantar uma musiquinha?!"
Todos com os bracitos no ar e eu de mãozinhas tombadas sem saber porquê tanto histerismo e, acima de tudo, para quê tanto barulho. Era um mundo de gente cheia de ruido!
Começam a cantar e eu começo a identificar... as músicas da Béba! As minhas músicas! Ela havia feito aquilo para mim! Ninguém me pedira autorização para cantar aquilo! Danada pus-me aos gritos e tentei explicar e foi ai que apanhei o meu primeiro desgosto; antes de me explicar a confusão que eu havia feito, a esposa de Nosso Senhor (abençoada a violencia doméstica, que tanto gosto me dava que baixasses a Tua santíssima mão naquelas bochechas rosadas!), riu-se. Riu-se a grande ordinarona! Há alguém que lendo isto não esteja indignado?! Riu-se a grande cabra!
Foi justiça divina, na minha humilde opinião. Mandei os sapatos para o raio que os partissem e espetei com uma série de pontapés nas canelas das freiras enquanto puxei os cabelos a todos os colegas a quem consegui deitar a mão. Qual SPA, qual o camandro! Defesa de direitos de autor sempre foi o meu forte!

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