Escrever-te uma carta é dificil...
Quando me apanhaste pequena ofereceste-me uma boneca. Na altura de partir retiraste-ma dos braços, não te compadeceste com as minhas lágrimas dizendo que ma tinhas apenas emprestado.
Quando o vovô me dava leite fresco com bolachas migadas deixavas que virasse as costas e enchias-me a taça com o leite do dia anterior.
Quando viste a minha caderneta da Heidi completa deitaste-ma fora e sorriste enquanto me observaste, um dia inteiro, procurando-a.
Os gigantones que escondias no armário saiam quando estávamos sós. Corrias atrás de mim, mascarada, sabendo do meu pânico, gargalhando estridentemente com o gozo que te dava o meu pavor.
Não eras uma boa pessoa. No entender da minha avó pobre não eras mau diabo... Alterando o sentido da frase também concordo com ela.
Acordei às cinco da manhã arrepiada. Sempre tive medo que morresses. Se alguém poderia voltar para me invadir o sono esse alguém eras tu.
Não te senti morrer e quando soube tremi... por ti.
Quando vi o teu caixão recordei-me do que foras antes de te conhecer.
Eras uma estampa. Alta como eu, festeira como eu, alegre como eu... Loira de olhos azuis, tez branca de neve. Desejada por beltrano e sicrano mas o que querias era festa.
Hoje alguém que nos deu os pêsames disse "Bendeu-me muitos copos de binho... Boazinha a Luisinha!"
Eras tu. Gostavas da malta malcriada e a cheirar a água ardente. Gostavas de comércio e de passar rasteiras aos clientes. A imperatriz dos trapaceiros.
Muito podia recordar que me transforma o sentir em não saber mas... Luísa, estou com saudades tuas!
Sabes o que foste na minha vida? O preto que me ensinou a amar o branco, o dia de chuva que me fez ansiar pelos dias de sol. Se não foras tu como poder amar o teu marido com a sua compassividade e mãos de sonho perdidas nos meus cabelos?
Se não foras tu como amar as idiossincrasias da mamã... Se não foras tu como saber o que não queria ser?
Sinto a falta do teu adeus.
Não nos gostávamos e não será a morte a fazer de mim uma hipócrita mas isso não significa que não te visse, não te olhasse e não te amasse desse modo invertido!
Porque insististe em partir sozinha? Seria assim tão perigoso para as tuas raivas teres sido capaz de gostar de mim só um bocadinho? Eu ter-te-ia agarrado na mão. Podias ter-me contado as guerras que tinhas com o vovô por gastares todo o dinheiro da loja pagando os foguetes dos festejos da aldeia. Tu não sabes mas eu também adoro foguetes. Aquele estampido que nos dá um leve susto que nos alveja a alma. Podias-me ter contado porque nunca dormias na cama dele. Pensas que não sei o que é o desapontamento, o esgotar de uma paixão?
Podias ter sido minha aliada. Eu não sabia que era a consumação da primeira desobediência da mamã.
Sabes Luísa, tenho saudades tuas.
Nunca a maldade será tão pura. A tua honestidade era rara... é que pessoas más encontro muitas mas as que declaram guerras troando, bradando o que pensam, nenhuma. Foste única e não te quero debaixo da terra.
É que eu vim de ti... E, sabes, aquela desarrumação que transformava os teus espaços em armazéns quase porcos? Eu sou tal qual a minha avó... Mas eu tenho vergonha e acabo por limpar, não tenho a tua coragem! Ando sempre contrariada tentando fazer o que detesto.
Como vês, se não calhasse ser tua neta poderíamos ter sido amigas.
Morreu a minha bruxa má do Oeste e levou um dos meus sapatinhos de rubi consigo... Será difícil conseguir voltar para casa.
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