quinta-feira, 10 de maio de 2012
O meu fantasma predilecto
Acordei cansada de tanto andar...
Assim que fechei os olhos regressaste. Levaste-me de novo para perto das vacas. Estava eu, pequena, de vestido vermelho arrancando as tranças que me fizeras com tanta ternura, de fronte para a mimosa, tocando no nariz cor de rosa e húmido.
"- Joaninha, não mexas nas vaquinhas." - dizias com as mãos metidas na mistura de ração que preparavas para o almoço das leiteiras malhadas.
Fazia sempre de conta que não te escutava e a mimosa, como forma de me agradecer o carinho, metia a enorme língua dentro de uma narina e lambia-me o rosto atirando-me ao chão. Ouvia-te rir, disfarçadamente, no canto do estábulo.
Depois desviava-me dos teus cuidados para fazer castelos dentro dos montes de feno.
"- Joaninha não mexas no feno." - dizias tentando que eu não passasse a noite ao teu colo de costas desnudas e borbulhentas enquanto as enchias de alcool canforado para que se acalmassem as comichões.
Eu sonhava com melhores dias para os borrachos que matavas em fila. Dizias ter pena que os bichos assistissem à morte dos seus parentes e fizeste uma máquina que os decepava a todos de uma "penada".
Agarravas-me ao colo e prometias-me que os caracóis que me emolduravam o rosto me fariam casar jovem com um príncipe de um reino distante.
"- Ele tem um lago com patos?" - perguntei-te.
No dia seguinte, depois de me colocares perto da mimosa, foste, de enxada na mão, para o terreno de pasto. Cavaste, cavaste, cavaste.
Três dias depois sabia que eras o meu príncipe encantado. E eu tinha um lago com patos.
Pão com marmelada, leite fresco... Eu comia deleitada, tu ias-me despindo para me dares banho. Tiravas os fios de palha do meu cabelo, os carrapatos do vestido. Lavavas as minhas meias no tanque de cimento porque sabias que tinha saudades do cheiro do tanque comunitário de Santo Varão. Correste todos os sabões até acertares com o cheiro que eu dizia recordar de quando para lá ia com os pés atentos à espuma e os ouvidos às cantorias das viúvas.
A água que me passavas no corpo estava sempre morna. Não me deitavas champô nos olhos, não me fazias uma beliscadura ao pentear-me os cabelos emaranhados.
"- Joaninha tens um ninho na cabeça."
"- Um ninho de quê vovô?"
"- Um ninho de amor..." - concluías com um beijinho repenicado na cabeça, e eu, deleitada, jogava os braços ao teu pescoço já morta de saudades tuas.
Na loja avisavas-me quando apareciam as velhas de bigode que me feriam a cara com os mimos excessivos a que não tinham direito. Fazias-me sinal e eu ficava alojada a teus pés, por debaixo do balcão de madeira, descascando caramelos.
Recordei, dormindo, o nosso reencontro. Tu de olhos rasos de lágrimas no recreio do colégio. Um momento de hesitação e o grito alto para os meus amiguinhos - "- Aquele avô é o meu!"
Vovô tenho tantas saudades de nós meu amor.
Acordei cansada e chorei até me doerem os pulmões.
Nunca ninguém me fez eclodir beijinhos no meu ninho, ninguém me fez lagos, ninguém foi condescendente com os meus disparates, ninguém gastou tempo procurando os cheiros que me dão prazer.
Depois de comer algo doce nunca bebo água... Tu dizias que se o fizesse o sabor da guloseima não teria durado quanto podia. Deixei de beber água depois de tudo o que me dá prazer...
A bênção, meu fantasma predilecto.
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